A Senhora da Chuva
(Miranda May)
O barulho das gotas de chuva - as últimas gotas de uma tempestade arrasadora - faz-se ouvir nas lages da calçada (como música para meus ouvidos inquietos). O fim de uma tormenta, as últimas gotas d'água sulcando a alma.
Quantas chuvas eu já chorei?! Nem me lembro mais. Mas a alma continua sombria como quando chorei a primeira.
E por que me sinto assim quando chove? Que mágica possui a chuva que, feiticeira, me faz pensar nas razões de minha vida? E este pensar, não é um simples pensar, é um pensar de pesar. Pesar os prós e os contras de nossa pacata e frívola existência. Este pensar que - inadvertidamente - faz com que desçamos aos níveis mais baixos de nossa consciência. Aquele nível (que Freud chamou de "Porão consciencial") que está repleto de cobras e lagartos. E, quando mais despercebidos, lá vem um lagarto, sibilando e arrastando-se para fora. Então, com seus movimentos reptílicos, invade, domina e nos envenena - até que os últimos pingos de chuva se façam ouvir lá fora.

A Certeza
(Humbelina Mattos)
O troço veio emergindo lentamente em silêncio, durante tempo impreciso. Revolução clandestina que eu, alheia nem pressentia. Resultado de um cotidiano insuportável, ignoradas de propósito, por medo da decisão. Num momento preciso, o ignorado ganhou vida própria e surgiu à tona. Nesse dia determinado, acordei e já não era mais o que era.
Ao meu lado, o marido de sempre. Assustada, descobri ele irreconhecível. Um qualquer banal e inofensivo como tantos outros. Aquele conforto do reconhecimento diário das suas próprias coisas, não estava mais para mim. Cada detalhe dele causava surpresa. A cor parda, dobras de pele nas pálpebras, nem mesmo os dentes, parecia jamais ter visto. Aquele despertador na cabeceira com a cara de urso panda. Não, definitivamente não dá para conceber que tenha sido eu a comprar. Eu juro.
Uma certeza caiu como um cofre na minha cabeça. Não queria mais estar ali, não queria mais estar casada com ele. Não queria nem mesmo estar casada. Mas ontem, anteontem, ano passado, estar casada foi uma certeza para mim, para quem eu era.

Desafio de Amar
(Monÿh Oliver)
Eu a conheci há 10 anos no hospital quando fazia residência. Ela tinha apenas 19 anos e havia sido vítima de agressão e abuso sexual. De imediato me identifiquei com ela, pois ainda na infância convivi com a violência física e ela veio justamente de meu progenitor, aquele que deveria me amar e proteger. Foi o período mais difícil de minha vida, isso causou uma ferida profunda em mim, que ainda hoje lateja.
Foi nesse período também que decidi ser médico, queria curar as feridas que tanto traz sofrimento às pessoas.
Talvez seja por isso que passei a dispensar uma atenção especial a ela e percebi que durante a sua estadia no hospital, ela nunca recebera uma visita. Procurei saber um pouco mais daquela jovem que estava passando por um momento tão sombrio e foi aí que descobri que Alice não tinha ninguém, ela era órfã e crescera em um orfanato.
As marcas da violência sofrida estavam expostas em seu corpo, em fraturas na face, braço e costelas, mas a pior marca ela trazia cravada na alma.

A Superação de uma Mulher Madura
(Mery Onírica)
Hoje, transpiro maturidade, pois já vivenciei metade das minhas histórias de vida. Superei a fome, o frio e a violência, passei pelos preconceitos e não abri mão dos meus direitos. Bati de frente com as desigualdades e fechei meu punho com as adversidades. Lutei pela liberdade de ser uma negra casada com um homem branco. Construí meu castelo (meu lar), abracei meu mundo (minha família), e colhi os frutos (meus filhos). Lutei, sofri, chorei e aprendi com as idas e vindas, de vitórias e fracassos, sorrisos e lágrimas. Derrubei barreiras dentro de mim.

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